Jornal do Brasil – Domingo

 

Agulhadas no morro

Lucelina de Jesus, 62 anos, dois filhos e cinco netos, sofria de dores nas costas. “Começou com dois tombos seguidos que eu levei”, diz. Embora fosse fundamental livrar-se da dor para manter o emprego – de faxineira numa escola de música em Copacabana – tinha aprendido que tratamentos fisioterápicos eram um luxo ao qual só teria acesso se, em vez de morar na Rocinha, morasse a cinco minutos dali, num daqueles prédios de alumínio e concreto de São Conrado que avista de sua janela.

Há dois meses, porém, a dor vem deixando Lucelina em paz. Ela emagreceu dez quilos, parou de comer frituras, cortou o café e, todo sábado, se submete a um ritual de agulhas quentes pelo corpo. Chegou até a conhecer seu mapa astral.

Esta não é uma história de ascensão social, mas um singelo exemplo de medicina social. Lucelina foi a primeira paciente do Núcleo Experimental de Tratamento Fisioterápico Professor Frederico Spaeth, que desde o dia 25 de agosto funciona uma vez por semana – sempre aos sábados, a partir das 16h – na sede da Associação de Moradores da Rocinha.

Gratuitas, as consultas ficam a cargo do acupunturista Márcio de Luna e do astrólogo Cid Bonifácio, ambos de 26 anos. “O objetivo é estreitar a distância entre os condomínios engradados e as encostas da cidade”, diz Cid, para quem a astrologia “está virando um coisa de consultório atapetado”.

Foi de Márcio, formado em fisioterapia, a ideia de homenagear Spaeth, seu ex-professor e introdutor da acupuntura no Brasil, que morreu este ano. “Estou tentando continuar seu trabalho. Ele nunca ficou rico, ao contrário da maioria de seus discípulos”.

Cerca de 30 pessoas já foram atendidas pela dupla na Rocinha, que estendeu até a favela um experiência realizada desde o início do ano em consultas remuneradas a pacientes de classe média: a combinação de técnicas de acupuntura e astrologia.

“A astrologia faz o levantamento dos pontos da constituição da pessoa que estão sendo ou serão fragilizados, e a acupuntura minimiza as crises antes que elas aconteçam. É a verdadeira medicina preventiva”, empolga-se o falante Márcio, que ainda receita ervas e orienta os pacientes sobre o que devem comer. “Tudo fácil de conseguir, mesmo para quem não tem dinheiro”.

A dupla, que nada recebe da Associação de Moradores, acha que vai acabar incomodando muito gente. “Soube que já houve uma reunião de acupunturistas para discutir o problema”, diz Márcio. “Eles estão preocupados porque cobram Cr$ 10 mil por consulta e eu estaria fazendo dumping. Só que isso não existe na área de saúde”. Eles preveem também a oposição dos céticos – mas, a estes, recomendam uma visita à favela.

“Quando cheguei não podia nem mexer o pescoço e agora estou boa”, vibrava outro dia Marta Melo Souza, de 28 anos. Se isso não for prova de eficácia da terapia, é no mínimo a comprovação de que meia hora de calor humano pode fazer milagres. Como diz Lucilene, “no INPS, o máximo que já consegui foram cinco minutos”.

Extraído do jornal do Brasil – Domingo, ano 15,  número 756, em 28 de outubro de 1990.